Habemus Papam
Habemus Papam




Sinopse (antes de mais nada): Após a morte do papa, segue-se o ritual em que os cardeais, isolados em quarentena, escolhem entre eles quem será a nova santidade. Entretanto, cada um parece temer ser o escolhido e ter que carregar o peso de uma autoridade tão responsável. Após a votação, o papa eleito entra em profunda crise existencial e renega o cargo. Um psicanalista é chamado para ajudar. O Vaticano passa por um choque interno jamais imaginado. Essa comédia dramática de Nanni Moretti participou da Mostra Competitiva no Festival de Cannes.

Quis começar a apresentação desse filme pela sua sinopse, o que não é costume eu fazer, pois este servirá muito mais como uma oportunidade de lhes apresentarem, um pouco, da visão da psicanálise em relação a religião e ao seu discurso. No entanto, o filme está, sem dúvida, recomendadíssimo! Tanto pela possibilidade de nos fazer refletir algumas questões ligadas à religião, pelo fato de trazer um psicanalista (foco de nosso interesse) na trama, e por tratar-se de um filme a principio extremamente surreal, mas não impossível.

O nome do filme trata-se do texto que é lido pelo cardeal para anunciar, ao povo, o novo Papa eleito e que este aceitou a eleição. No entanto, no caso do filme o "escolhido" na hora da leitura do Habemus Papam (Temos Papa) foge ao que deveria ser seu "destino" pela vontade divina, recusando o cargo, provocando um verdadeiro caos.
Um psicanalista é então chamado com o intuito de ajudar o Papa eleito na sua dor de existir, do ser só humano, além do peso da responsabilidade do cargo. Assim, numa cena engraçadíssima, na chegada do psicanalista ao Vaticano, no início do "tratamento", tudo aquilo que seria designado como a regra da psicanálise, é impedida. Ao começar pela falta de sigilo e da impossibilidade da fala livre, pois ali, de forma alguma caberia a ética do desejo da psicanálise, afinal qual seria o desejo do novo Papa?

O filme nos apresenta, portanto, uma extrema e fantástica contradição, uma vez que não seria a religião aquela que viria "para acalmar e resolver o clamor do sujeito, sua falta, seu sentimento de vazio, o esburacamento que sente no corpo?"  "O religioso não seria, baseado em sua própria experiência de existir e sedento de respostas sobre esta existência, aquele que envolve-se em um ambiente, onde possa se sentir acolhido, onde tenha um lar, um reino, Um Pai?" (Giovana Guzzo Freire)

Habemus Papam, vem nos mostrar, com a "ajuda" da psicanálise, numa crítica cômica, que a verdade das religiões, carregadas de promessas de libertação e de um saber sobre o sujeito, não se sustenta diante da dor e da angustia de existir e é  nesse ponto que o discurso religioso se distancia do discurso psicanalítico.

"A religião ocupa o lugar de acomodação da angústia ofertando sentido para além da vida humana, explica os enigmas do mundo, garante a compensação das frustrações terrenas numa existência futura, produz respostas generalizáveis. É possível analisar que a religião tampona a angústia da decisão na medida em que esta é conforme a vontade de Deus e já está determinada nos princípios da igreja e na Bíblia. O homem tem na religião a possibilidade de não ter trabalho com seu próprio desejo, uma vez que basta entregá-lo a Deus. Enquanto a psicanálise aponta para um lugar insustentável, difícil de se conviver, se ocupa em abrir espaço para o sujeito fazer sua singularidade." (Gontijo)

O discurso psicanalítico, diferentemente do religioso que é carregados de verdades, direciona o sujeito na construção do saber, do saber do seu gozo, do seu desejo, da sua angustia. A psicanálise convoca o sujeito a fala, possibilitando que este faça uma borda no Real, diante do desamparo de existir, ao contrário da Religião que se apresenta como aquela que tampona o Real, uma vez que esta "oferece ao sujeito proteção contra o desamparo e promete felicidade, dando sentido as coisas através de respostas ilusórias à questões insolúveis, como a morte" (Gontijo).

Na religião, o desejo se acaba e só poderá aparecer como sintoma. No filme, isto nos fica muito claro através do personagem principal, que ao ser eleito ao mais alto cargo eclesiástico, se "descobre" desejante, logo, angustiado, tendo que dá conta do seu mais novo sintoma.

Por Suiá Freitas de Queiroz

Para baixar: http://www.mediafire.com/?7njq0f9dc236kx2 

Shame
Shame




Filme fresquinho, recém lançado em alguns cinemas de algumas cidades brasileiras. Não é o caso, meus caros colegas de Fortaleza, da nossa cidade, que com alguns pequenos grandes atrasos uma hora chega!
Antes mesmo de ter a oportunidade de assistir ao filme, havia lido no blog Conteúdo Livre (que eu sigo!), a coluna da semana do Contardo Calligaris, psicanalista que escreve semanalmente para a Folha e do qual gosto muito, a sua visão e crítica sobre tal filme. 
Bom, pra quem se interessar possa, aí vai o que esse psicanalista nos chama a atenção:

"Contardo Calligaris - Sexo e vergonha

Os que consideramos maníacos sexuais são apenas os que praticam mais sexo do que a gente

IMAGINE ALGUÉM que acaba sua noite com um sexo rápido e intenso, em pé, embaixo de uma ponte, e eis que, uma vez em casa, ele entra na internet e transa virtualmente com uma stripper de site on-line.
Não há gozo que lhe baste: sempre sobra a vontade de mais uma vez, mesmo que seja se masturbando com esforço. Outra noite, depois de ter brincado pesado com uma moça num bar, ele se pega com um cara no labirinto de uma boate gay: na procura por mais sexo, vale tudo.
Mas cada rosa tem seus espinhos. O disco rígido do nosso jovem está repleto de pornografia, até no computador do escritório -o que é arriscado. E, sobretudo, ele está aflito: a vergonha o leva a jogar fora (periodicamente) os apetrechos de sua sexualidade fantasiosa, e ele sente culpa de não conseguir ser o irmão, o amigo -e, quem sabe, o namorado- que ele talvez gostasse de ser.
Se esse alguém pedir ajuda a um terapeuta, alguns colegas tirarão da manga o "diagnóstico" de sexo-dependência ("sexual addiction") e proporão o programa em 12 passos (ensinado nas especializações em sexo-dependência), para que o indivíduo aprenda a se controlar e a renunciar, ao menos em parte, ao sexo, que teria se tornado, para ele, uma espécie de droga.
Mesmo sem acreditar nos 12 passos, outros colegas concordarão com o diagnóstico e simpatizarão com o "óbvio" sofrimento do "sexo-dependente" -afinal, eles imaginarão, essa prática endemoniada do sexo "deve", no mínimo, aviltar o indivíduo aos seus próprios olhos.
Outros colegas ainda (e eu com eles), ao receber o pedido de ajuda de um suposto sexo-dependente, reagiriam de maneira diferente: não se preocupariam nem com as fantasias, nem com as práticas sexuais do paciente, mas com a culpa e a vergonha que as acompanham.
Eu também anunciaria ao paciente que não sei (ninguém sabe) disciplinar o desejo sexual; só posso, se ele quiser, tentar disciplinar a culpa e a vergonha que azucrinam sua vida e estragam seus prazeres.
Quem viu "Shame" (vergonha), de Steve McQueen, percebeu que nosso paciente hipotético se parece com o protagonista do filme.
Em cartaz desde sexta passada, "Shame" é, ao mesmo tempo, ousado e careta. Ousado, pelo retrato da procura sexual do protagonista (muitos, sem dúvida, se reconhecerão), e careta, porque essa procura parece ser necessariamente doentia, culpada e vergonhosa.
Concordo com Cássio Starling ("Ilustrada" de 16/3): o filme é ótimo, mas discordo do destaque do artigo, segundo o qual "McQueen foge do moralismo ao abordar a compulsão por sexo". Quem enxerga o desejo sexual do outro como uma patologia é sempre moralista. Em matéria de sexo, patologizar é o jeito moderno de estigmatizar e policiar (conselho: fuja de parceiros que acham você "doente").
McQueen (na mesma "Ilustrada") declarou que o negócio dele é desafiar as pessoas. Ora, apresentar um obcecado por sexo como um doente que sofre de vergonha e culpa, isso não é desafio algum -ao contrário, é a confirmação de um lugar-comum.
Um lugar-comum confirmado por psiquiatria e psicologia? Nem isso.
Certo, desde o século retrasado, a psiquiatria e a psicologia são regularmente chamadas a substituir a religião, que (digamos assim) cansou de ser a grande ordenadora e controladora do comportamento humano. No caso, a ideia da "sexo-dependência" surgiu nos anos 1970 -provavelmente, como reação contra o interesse "excessivo" pelo sexo durante a dita liberação sexual dos anos 1960.
Mas, sentindo talvez o bafo do moralismo, muitos psiquiatras e a psicólogos receberam essa categoria diagnóstica com desconfiança. Quem a adotou e promoveu foram a imprensa e o grande público (e isso bastou para que surgisse uma pequena indústria de clínicas, programas universitários etc.). Mas por quê, então, esse sucesso popular da "sexo-dependência", na qual McQueen parece acreditar?
Apenas uma constatação: a associação de sexo com vergonha e culpa é um bordão cultural muito antigo, no qual somos convidados a acreditar por todo tipo de poder. A exigência de domesticar o desejo sexual parece ser, aos olhos de todos, um pré-requisito básico de qualquer ordem social.
Além disso, há a eterna inveja dos reprimidos: como dizia Alfred Kinsey, em regra, os que consideramos doentes e maníacos sexuais são apenas os que praticam mais sexo do que a gente."



@ccalligaris